O Distrito Federal começa a ganhar um artesanato com cara própria e a regionalizar sua produção
Flávia Duarte
Para a antropologia, o artesanato é símbolo de uma comunidade. Por meio dos objetos criados por um grupo, constrói-se uma identidade capaz de distingui-lo dos demais. Assim, o trabalho do artesão vira uma referência capaz de remeter imediatamente ao lugar onde foi criada aquela peça, seja pela matéria-prima típica ou pelas técnicas usadas na região. Quem compra o artesanato leva para casa a história de uma comunidade. Será, então, que uma cidade jovem como Brasília já tem sua tradição bordada, esculpida, costurada, cuidadosamente elaborada de forma manual? Sim, garantem os estudiosos do assunto. “O artesanato brasiliense é resultado de correntes migratórias que vieram para a cidade, no início da capital. Essas pessoas trocaram informações e o que surgiu foi um artesanato local, com forte perfil urbano, mais moderno e contemporâneo, assim como é Brasília”, define a gestora de artesanato do Sebrae-DF, Rogéria Santa Cruz. Na cidade de terra vermelha, o buriti, a mamona, a folha moeda, tão características do cerrado, são as principais matérias-primas. Os bordados são inspirados na fauna e flora da região, os quadros e painéis resgatam paisagens que só são vistas por aqui. Além de se inspirar no ambiente em que vivem, os artistas brasilienses, cerca de 14 mil, compartilham as experiências. Um aprende com o outro. Formam-se verdadeiras comunidades artesãs, que ocupam lugar no mapa do DF. Em Planaltina, os artesãos fazem uso das flores e fibras naturais para criar quadros, arranjos, cestos. Só de ver o esqueleto da folha moeda enfeitando uma peça, é possível reconhecer que ele só pode ter vindo das redondezas da capital. Brazlândia reúne os grandes conhecedores da arte de moldar os talos do buriti, transformados em tótens, santos, animais. Já Taguatinga é notória pelos bordados. As bordadeiras de lá ficaram famosas por desenhar com linhas as formas secas e tortuosas da vegetação local. E Samambaia começa a se destacar pelo uso das flores. “É importante que as peças artesanais tenham essa identidade. Você bate o olho e já sabe que foi fulano de tal quem fez”, comenta Rogéria. Reunião de talentos O mapa do artesanato do DF também está reunido num espaço generoso com o talento local. Numa volta pela loja Cerrado em Alta, é possível identificar os bonecos coloridos em forma de tótens criados por dona Teresa e Maria Esmelinda, os buquês de pequeninas flores do cerrado de Conceição, as peças em madeira de Fátima Bueno. Estão lá também os grafismos de Rose Michelson, hoje a única dona da loja. Ela fez parte do grupo de 13 artesãs que, há cinco anos, foi convidado para expor em um shopping da cidade. Em princípio, o projeto duraria 30 dias. Com tamanho sucesso, o temporário virou permanente. Sete dos expositores acabaram montando uma loja fixa no local. A Cerrado em Alta mostra o trabalho de 34 artesãos. Os produtos são cuidadosamente selecionados. “Avaliamos se ele representa a cultura nacional ou do cerrado, se tem um bom acabamento, preço justo e se o artesão é comprometido com a produção”, explica Rose. Para ela, isso põe o artesanato em evidência no mercado. O preconceito, muitas vezes, existe porque as pessoas ainda creem que o produto feito manualmente é mal acabado, com design ultrapassado. Pura falta de conhecimento. Os artesãos se preocupam em agregar história, criatividade e qualidade às suas criações. “Outra característica do artesanato de hoje é o consumo consciente da matéria-prima, o cuidado com o meio ambiente e a responsabilidade social”, acrescenta Rose. Os consumidores reconhecem. O boca a boca chega ao ouvido de pessoas que sabem apreciar a história de cada peça e reconhecem a importância cultural da produção, especialmente os estrangeiros. Muitos querem saber sobre a vida do criador. Escutam causos sobre quem aprendeu a arte sozinho, com os pais, os avós e hoje ensinam aos filhos e aos netos. Rose faz questão de falar um pouquinho da história que vem junto com cada uma daquelas assinaturas — inclusive da sua. Ela era funcionária de empresa privada, “uma burocrata”, como define. Doze anos atrás, foi morar na Bahia e assumiu a tarefa de pintar as paredes de casa. De repente, se viu pintando os móveis, as cortinas, os tecidos do sofá. De volta a Brasília, em 1996, chegou à conclusão que não queria mais a rotina entre papéis. Descobriu ainda que sabia desenhar. E o melhor: que as pessoas gostavam muito de seu trabalho. Durante oito anos, vendeu nas feiras da cidade as mandalas e tecidos que criava. Uma série de grafismos inspirada na arte primitiva, africana e aborígene da Austrália. Os animais que fizeram parte da sua infância na fazenda e os que vivem no cerrado volta e meia aparecem em sua obra. Entre retalhos As cores vibrantes atraem o olhar. Os retalhos são cuidadosamente escolhidos e combinados. Formam grandes tecidos, coloridos, criativos. Depois viram saias, vestidos e blusas. A proposta da empresária e estilista Elda Albuquerque é levar o artesanato que enfeita a casa para o armário. “Estamos acostumados a ver o patchwork em peças de decoração, mas não nas roupas. Queria buscar uma moda diferenciada, não só pelo produto, mas pela história daquilo que a pessoa está vestindo”, explica. E assim foi feito. Pensando também em uma produção ecologicamente correta, a marca Via Flora aproveita os retalhos de tecidos para criar roupas novas e ousadas. Elda desenha as peças e as cooperadas da Estika e Puxa, de Samambaia, com ajuda das as irmãs da Mari Macedo, do Guará II, cortam e costuram cada uma das tirinhas. “A gente ainda está testando a melhor maneira de unir os retalhos para que o resultado fique arrojado. O que faz o trabalho ficar bonito é a criatividade”, acredita Edilza Barros, uma das costureiras. A produção, iniciada há poucos meses, começa a atrair os olhares do público brasiliense. Também foi entre os retalhos que aflorou a criatividade das irmãs Mônica Teixeira e Jac Bara. A primeira é professora de artes, a outra é fotógrafa. Ambas têm o olhar treinado para o belo, a estética e as formas, que somam à experiência pessoal. As duas artesãs cresceram em uma casa de 10 filhos. Ali, costurar as roupas de cama e fazer almofadas era questão de economia. “Nós sempre tivemos muita intimidade com a máquina de costura. Crescemos com esse movimento”, justifica Mônica. Há oito meses, a dupla decidiu investir na tradição familiar e criar o Ateliê Pano Feito. A ideia é oferecer produtos diferentes dos industrializados, únicos e com muita qualidade. Fazem lençóis de tecidos nobres, colchas de retalhos para adolescentes com panos garimpados, importados; almofadas para bebês com bordados exclusivos e acabamento sem fechos e botões para garantir o conforto da criança. Sem falar nos jogos americanos, nas bolsas etc. “O mais legal é brincar com a combinação dos tecidos”, garante Mônica. Reconhecimento externo Os artesãos do DF ganham outros mercados e brilham fora daqui. Até amanhã, uma representante da cidade, a artista Maria de Lourdes Amado, estará no Festival Pan-Africano na Argélia, do qual participam 48 países. É a segunda vez que ela leva o Distrito Federal e o Brasil para o exterior. Ano passado, recebeu o mesmo convite do Itamaraty. Naquela ocasião, foi exposto na Índia. O trabalho de Maria de Lourdes é feito com fibras naturais e pedras. Um dos destaques é o famoso capim dourado, que a artesã transforma em objetos de decoração. Também de Brasília são as duas artesãs que levaram o terceiro lugar da categoria iniciante, no 2º Concurso de Patchwork, que ocorreu mês passado, em São Paulo. Célia Regina Custódio e Cristina Maria Bogossiam foram as representantes da cidade que ganharam o evento em homenagem aos 50 anos da Bossa Nova. Saiba mais Atualmente, o fazer manual está valorizado. É uma contrapartida à massificação e uniformização de produtos globalizados, pois promove o resgate cultural e a identidade regional. Mas nem tudo é artesanato. Entenda as diferenças: Arte popular É conjunto de atividades poéticas, musicais, plásticas e expressivas que configuram o modo de ser e de viver do povo de um lugar. Trata-se da produção de peças únicas, fruto da criação individual. Artesanato É atividade produtiva que resulta em objetos e artefatos acabados, feitos manualmente ou com o uso de meios tradicionais ou rudimentares, com habilidade, destreza, qualidade e criatividade. São produzidas pequenas séries, com regularidade, de produtos semelhantes, porém diferenciados entre si. Nesse tipo de trabalho, há um compromisso com o mercado, já que o artesão depende financeiramente da produção. Trabalhos manuais Exigem destreza e habilidade, porém usam moldes e padrões pré-definidos, resultando em produtos com estética menos elaborada. Na maioria das vezes, é uma ocupação secundária ou um passatempo. Cada vez mais profissionais Para que o artesanato se adapte às exigências do mercado é necessário se profissionalizar: oferecer um produto com acabamento de qualidade, design moderno e condições de produção para atender a demanda. Em Brasília, o estilista mineiro Ronaldo Fraga já participou diversas vezes de oficinas em cooperativas para associar seus conhecimentos de moda com a criatividade desses artistas. Um dos grupos que recebeu a consultoria de Ronaldo foi a Paranoarte — Rede Solidária de Artesanato e Cultura Popular, que reúne, desde 2002, mais de 200 mulheres do Paranoá. O maior diferencial do grupo é o trabalho de reaproveitamento de banners publicitários em bolsas e acessórios. Em 2006, quando desfilaram no Brasília Fashion Festival, um evento de moda da cidade, a Paranoarte recebeu consultoria do estilista. Ele mostrou às artesãs que era possível usar a técnica já desenvolvida por elas e mesclar outros tipos de artesanato para criar roupas diferentes. Surgiram, assim, saias, vestidos de banner com crochê e com tecelagem. “É muito importante esse tipo de orientação que aproveita a vocação das artesãs e agrega o conhecimento e a inovação do estilista, no caso o Ronaldo”, acredita Aída Rodrigues, fundadora da Paranoarte. Tradição preservada A necessidade de nortear o trabalho dos artesãos, aliás, foi uma das razões que levou o Sebrae-DF a criar, em 1994, um setor responsável por incentivar e orientar a produção artesanal. Desde então, designers de moda e decoração são convidados a adaptar as peças artesanais sem descaracterizar o trabalho do artista. Para isso, o Sebrae define algumas diretrizes: Usar cores pertencentes à paisagem do artista, suas imagens prediletas, sua fauna e flora. Retratar os tipos humanos e seus costumes mais singulares Usar as matérias-primas disponíveis na região e técnicas que foram passadas de geração em geração. O surgimento de novos produtos deve ser resultante de um processo espontâneo de criação de artistas populares. É preciso intervir sem descaracterizar, valorizando e reforçando as tradições regionais, a habilidade dos artesãos e as relações existentes no interior dos grupos trabalhados. Sonho realizado Para tornar seu trabalho conhecido, Marisa de Goes participa de feiras. Já foi a muitas. Quase todo fim de semana tem uma ou mais na cidade. E, aos 57 anos, Marisa realizou o sonho de viver do artesanato. Adora criar desde meninas, quando fazia roupinhas para as bonecas. “Sempre costurei para mim. Nunca gostei de ter nada igual ao de outra pessoa.” Na juventude, pensou em fazer artes plásticas, mas o pai temia que a escolha não desse retorno financeiro. Ela decidiu, então, ser agrônoma. Encontrou na profissão uma nova paixão, mas nunca deixou o artesanato de lado. Há quatro anos, aposentou-se. Era hora de assumir a vocação. Começou a fazer colares, cintos, pulseiras de tecido para vender. Só lamenta o fato de que o artesanato ainda não tem o valor que merece. “Aqui no Brasil, sempre esteve muita associado só aos hippies ou a peças sem qualidade. Muitas pessoas acham bonito, mas pensam que é caro e acabam não levando”, acredita Marisa, que se esforça para cobrar o mínimo possível por suas peças. Mesmo assim, adora o que faz. Para ela, é uma terapia criar. E, para quem pensa que é fácil, avisa: “Dá um trabalho danado, combinar a cor certa, fazer o acabamento. As pessoas precisam encarar esse tipo de criação como arte mesmo”. Herança familiar Dona Teresa Etelvina da Luz, 85 anos, mãe de quatro filhos e avó de sete netos, vive numa casa simples em Brazlândia. Naquelas paredes humildes, não tem pendurado nenhum boneco de buriti (uma árvore do cerrado) feito por ela e que enfeitam casas no mundo inteiro. Nem os criados pelo marido Quincas, falecido em 1995. Foi com ele que Teresa aprendeu a esculpir os talos tão leves que mais parecem isopor. Não sobrou nenhum. “Vendi todos. Precisava do dinheiro”, explica. Quincas se tornou famoso em Brazlândia, em Brasília e bem longe daqui. Com canivete, fazia bonecos e tótens no buriti. “Ele nem via o tempo passar. Eu levava água, comida, remédio, porque ele nem se levantava”, conta. Quando morreu, dona Teresa se apoderou do canivete e passou a recriar o ofício do marido. Desenvolveu um estilo próprio. Só faz mulheres. Todas ganham um vestido colorido e boca vermelha. Com a idade avançada, ela não enxerga bem. E como consegue dar forma à madeira? “Ah, minha filha, vou no rumo.” Não sabe dizer por que gostam tanto do seu trabalho. Mas mostra, orgulhosa, o livro que mandaram de São Paulo, com sua foto e de suas bonecas. São muitos os clientes interessados। “Minha casa vive cheia de gente que vem aqui comprar as bonecas. Dia desses veio um da Holanda e levou um monte”, conta, enquanto esculpe os talos de buriti. “O telefone sempre toca, de gente de toda banda, de muito longe. Depositam o dinheiro e eu mando as peças”, garante. Tem épocas de muitas encomendas ou de carros que param lá e levam toda a produção de uma só vez. Na porta de casa, vende mais do que em exposição, por isso não vai mais às feiras. “Tinha vezes que eles mandavam um carro me buscar aqui e eu ia.” Com o dinheiro das bonecas, ela realiza seus sonhos. O próximo? “Comprar um armário para a cozinha. O meu está enferrujado e não realça mais.”
Publicado pela Agência SEBRAE:
http://www.agenciasebrae.com.br/noticia.kmf?noticia=8697182&canal=36&total=88390&indice=70
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